Crónicas  //  Crime, escreveram eles

Um «copycat» na praia do Guincho

Crónica de Célia Pedroso, publicada no já extinto "Tal&Qual", em 28 de Abril de 2006.

 

Praia do Cuincho (c) Rui Bela
Um dos crimes que Dick Haskins imaginou poderá ter dado origem a um crime verdadeiro. No livro "A Minha Missão é Matar", que nas edições seguintes se chamou "Lisboa 44", há um cadáver que aparece nu no Guincho.

"Pouco tempo depois da sua edição, em 1959, deu à costa um corpo na praia do Guincho e disseram-me que esse caso se inspirava no meu livro. Não sei se de facto assim foi, mas havia semelhanças...", conta Andrade Albuquerque.

Histórias de detectives e ladrões, assassínios e outros crimes continuam a fascinar leitores de todas as idades. Os autores portugueses de livros policiais não são muitos, mas produzem obra de qualidade, com edições no estrangeiro. Mas o que os inspira? Entre a ficção, há muita realidade...

Lisboa 44
Escrever livros policiais exige muita imaginação mas também bons olhos para estar atento à vida real e algum trabalho de investigação. Quisemos saber onde se inspiram os principais autores portugueses do género. E todos contam métodos diferentes para chegar ao "crime".

Dick Haskins, de 76 anos, pseudónimo de António de Andrade Albuquerque, escreve livros policiais há quase 50 anos. "Em Portugal, em 1958, era impensável publicar um policial com um nome português, por isso resolvi adoptar um britânico, até porque o meu bisavô era inglês".

Dessa relação familiar resultou a própria personagem de Dick Haskins, que entra na maioria dos seus 30 livros policiais, a maioria disponíveis na Asa. " Ele é aquilo que eu gostaria de ser, um 'bon vivant', um perito em criminologia que vive em Londres e tem um grande amigo na Scotland Yard. Vive em Sloane Square, é muito duro mas humano ", explica o autor.

Para se inspirar, o autor português visitou mesmo a Scotland Yard mais do que uma vez, bem como a nossa Polícia Judiciária. Chegou a assistir a interrogatórios e visitou os laboratórios científicos. Das suas incursões resultaram muitas ideias e também reacções inesperadas, ainda nos anos 60. "Um dia recebi um telefonema do director da Polícia Judiciária, que queria saber quem eu era. É que o ministro da Justiça da altura, Antunes Varela, leu o meu livro 'Premeditação', que abria com uma introdução sobre a PJ. E o ministro julgava que eu era estrangeiro e queria convidar-me a vir a Portugal..."

António Albuquerque tem no prelo dois livros que não se enquadram tanto neste género - aliás nem gosta da designação policial. "O Papa que Nunca Existiu" é a história de uma criança portuguesa que acaba por ser eleito Papa. Já "O Expresso de Berlim", passado na II Guerra Mundial, desenrola-se nos campos de concentração. "Foi quase tudo imaginado, mas no segundo inspirei-me muito na espionagem que existia em Lisboa durante a guerra. Vivi esse tempo, em que se cruzavam espiões dos dois lados, por exemplo na pastelaria Coimbra, na rua Alexandre Herculano".

Além das suas memórias de infância, recorreu à Internet para reconstituir as antigas linhas férreas, visitou campos de concentração e andou muito a pé. E inclui histórias que lhe chegaram pela família. Como a do Duque de Windsor que veio à inauguração da Exposição do Mundo Português: " Esteve para ser raptado pelos alemães. Um meu primo era seu segurança e só respirou fundo quando o levou ao aeroporto ".

António queria estudar Medicina. Mas acabou por se dedicar ao romance policial. E foi coleccionando uma biblioteca considerável: " Tenho muitos livros de Medicina Legal, manuais de Anatomia, para quando tenho dúvidas ou preciso de aprofundar determinado tema ".

Outras experiências pessoais acumuladas nas suas viagens a Londres - onde ainda tem família - também serviram de inspiração. Desde o Bentley's e os Rolls Royce estacionados em Piccadilly Circus, cujos motoristas procuravam prostitutas e prostitutos, a um assalto a uma joalharia que presenciou, com tiros e perseguições.

De outra vez, durante um passeio a pé foi parar ao Soho. " Armado em turista, com máquina fotográfica, quando dei por mim estava numa zona perigosa e vejo dois ou três indivíduos a brincarem com uma ponta e mola. Se voltasse para trás estava tramado, por isso fiz um sorriso amarelo e fui em frente. A Scotland Yard disse-me depois que nunca devia ter entrado nessa zona, pois às vezes as pessoas só saiam dali na horizontal ".

Os livros de Dick Haskins já foram editados em 22 países e o autor português estima que se tenham vendido entre quatro e cinco milhões de exemplares.